8 de jul. de 2010

vila forte

Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar?
António Lobo Antunes


pai, na verdade eu tinha receio de subir com a ajuda do cara dos cavalos, aquela piscina redonda, os azulejos que deslizavam tanto, eu com quatro anos te escalando, vestindo a sunga azul que ganhei no aniversário (depois de abrir o embrulho com o novo megazord, claro), já dezenove anos que fomos ao Vila Forte, por causa do metal úmido escorreguei e cortei o queixo no trepa-trepa (ontem choveu, aqui em São Paulo a frente fria ainda não arredou), voltamos à Joatinga, o barulho do mar antes de dormir, as ondas lá embaixo – não disse, os cavalos não fazem mesmo sombra no mar, já se foram

29 de mar. de 2010

para conhecimento – juan gelman

"enquanto nos amamos/ um cão
late na cozinha íntima/
tecemos vida e morte/
olhos puros tua mão/

onde está o cântico/
dos cânticos?/ o
visível que munda noutro lugar?/
abrirá o ar que não se deu?/

estariam escritos os escritos
de dois em um/ a obra
que não preserva nada?/

nunca sabemos o que aconteceu/ a noite
somos nós/ tranquila/
cala abismos/"


GELMAN, Juan. "Sépase", in Mundar. Buenos Aires: Seix Barral, 2007, p. 47. Tradução minha.

Juan Gelman nasceu em Buenos Aires, em 1930. É um dos maiores poetas argentinos do século XX. No Brasil, apenas alguns de seus livros foram traduzidos. Este
Mundar ainda é inédito por aqui. Abaixo, o poema original.

Sépase

"mientras te amo/ un perro
ladra en la íntima cocina/
cosemos vida y muerte/
ojos puros tu mano/

¿a dónde se fue la canción/
de las canciones?/ ¿el
visible que munda en otra parte?/
¿abre el aire que no sucedió?/

¿estaba escrita la escritura
de dos en uno/ la obra
que no conserva nada?/

nunca sabemos qué pasó/la noche
es nosotros/ tranquila/
calla abismos/"

10 de fev. de 2010

a pequena chama – juana de ibarbourou

"Eu sinto um amor selvagem pela luz.
Cada pequena chama me encanta e me ultrapassa.
Não é cada lume um cálice que conduz
O calor das almas que encontra em sua jornada?

Algumas são pequenas, azuis, tremelicantes,
Iguais às almas taciturnas e bondosas.
Outras são quase brancas: lírios fulgurantes.
Outras, quase vermelhas: espíritos de rosas.

Respeito e adoro a luz como se fosse inteira
Uma coisa viva, que sente, que medita,
Um ser que nos contempla, transformado em fogueira.

Assim, quando morrer, hei de ser, a seu lado,
Uma pequena chama de doçura infinita
Em suas noites longas de amante desolado."


IBARBOUROU, Juana de. "La pequeña llama", in Lenguas de diamante. Montevidéu, 1919. Tradução minha.

Juana de Ibarbourou (1892-1979) foi uma poeta uruguaia incrível. Começou a publicar seus poemas apenas com 16 anos de idade, antes de se começar a falar em modernismo aqui na América do Sul. Embora sua poesia seja composta de sonetos, versos com métrica e rimados, Juana influenciou muito sua geração e seus sucessores, não apenas no Uruguai, mas em todo continente e na Espanha. O desnudamento sincero da alma – muito além de fórmulas prontas e pastelões – impressiona, ainda mais vindo de uma mulher naquela sociedade. Suas obras completas já foram editadas três vezes na Espanha pela Aguilar, e ainda assim Juana nunca foi traduzida no Brasil. Abaixo, o soneto original.



La pequeña llama

"Yo siento por la luz un amor de salvaje.
Cada pequeña llama me encanta y sobrecoge.
No será, cada lumbre, un cáliz que recoge
El calor de las almas que pasan en su viaje?

Hay unas pequeñitas, azules, temblorosas,
Lo mismo que las almas taciturnas y buenas.
Hay otras casi blancas: fulgores de azucenas.
Hay otras casi rojas: espíritus de rosas.

Yo respecto y adoro la luz como si fuera
Una cosa que vive, que siente, que medita,
Un ser que nos contempla transformado en hoguera.

Así, cuando yo muera, he de ser a tu lado,
Una pequeña llama de dulzura infinita
Para tus largas noches de amante desolado."

28 de jan. de 2010

cheiros – salvador puig

"Casa, o cheiro de casa
há muito tempo se foi
e foi ao que busca
entre as sombras a sombra
de seu corpo, o pão caseiro.

O cheiro d’água, da água
que habita num lugar
onde as sombras andam
por dentro de todas as sombras.

Com cheiros somente deveria ser possível
fazer-se o sol, e a seguir a lua,
as estrelas, uma mão e,
se houvesse tempo, uma casa de
verdade, um pão caseiro."


PUIG, Salvador. "Olores", in Escritorio. Montevidéu: Linardi y Risso, 2006. Tradução minha.


Olores

"Casa, el olor a casa,
a tiempo que se fue de la mano,
a la mano que busca
entre las sombras la sombra
de su cuerpo, el pan casero.

Olor a agua, al agua
que habita en un lugar
donde las sombras andan
por adentro de todas las sombras.

Con sólo olor debiera ser posible
hacer el sol, luego la luna,
las estrellas, una mano y
si el tiempo alcanza, una casa
visible, un pan casero."